Depois da internet morta: o que ainda é real?
1. Introdução – A estranha sensação de que “algo quebrou” Há alguns anos, abrir a internet significava entrar num lugar.Hoje, muitas vezes, parece entrar num fluxo sem rosto. Você arrasta o dedo pela tela e vê: Nada é exatamente falso, mas quase nada parece verdadeiro.Não é que a informação tenha sumido. É quase o contrário: […]
1. Introdução – A estranha sensação de que “algo quebrou”
Há alguns anos, abrir a internet significava entrar num lugar.
Hoje, muitas vezes, parece entrar num fluxo sem rosto.
Você arrasta o dedo pela tela e vê:
- vídeos curtos com narrações idênticas,
- imagens perfeitinhas demais pra serem reais,
- textos genéricos que poderiam ter sido escritos por qualquer um – ou por ninguém.
Nada é exatamente falso, mas quase nada parece verdadeiro.
Não é que a informação tenha sumido. É quase o contrário: há tanto conteúdo que a experiência de sentido se dissolve.
1.1. O feed que não parece mais humano
Essa sensação é difícil de nomear, mas familiar:
é como conversar com alguém que responde tudo certo, mas nunca diz nada que realmente te toca.
Os vídeos “explicam” tudo, os textos “resumem” tudo, as opiniões “reagem” a tudo.
E, ainda assim, você fecha o aplicativo com uma impressão estranha:
“Eu vi muita coisa… mas não sei se estive realmente em lugar nenhum.”
A promessa era de conexão.
O efeito, cada vez mais, é de deslocamento.
1.2. A hipótese central: a fase mais cega do uso da IA
Talvez o que incomoda não seja a tecnologia em si, mas o modo como estamos usando essa tecnologia.
Podemos estar vivendo uma fase histórica muito específica:
a fase mais podre e mais cega do uso da IA –
quando conseguimos multiplicar linguagem, imagens e vozes em escala industrial,
mas ainda não aprendemos a dar responsabilidade, limites e propósito a esse poder.
Não é o apocalipse, nem uma profecia definitiva.
É um período de desequilíbrio: a capacidade de produzir explodiu, a capacidade de compreender não acompanhou.
Este texto é um convite a olhar para isso com calma:
- como saímos de uma internet “viva” para algo que muitos já chamam, metaforicamente, de “internet morta”,
- por que a IA empurra esse movimento ao extremo,
- e o que poderia existir depois desse momento – se ainda for possível falar em algo como “real”, “verdadeiro”, “presença”.
2. Da internet viva à internet morta
2.1. Quando a internet parecia um lugar de encontro
Houve um tempo em que estar online era, antes de tudo, chegar a algum lugar:
- fóruns cheios de apelidos estranhos,
- blogs com textos enormes e comentários ainda maiores,
- comunidades em que as pessoas discutiam obsessivamente um tema específico.
Nada disso era perfeito ou romântico.
Havia briga, ego, desinformação, imaturidade.
Mas havia também algo essencial: a sensação de que existiam pessoas ali.
Você reconhecia:
- o jeito de escrever de alguém,
- o humor recorrente de outro,
- as mesmas figuras voltando, errando, mudando de ideia, amadurecendo em público.
O conteúdo vinha junto com uma história de autoria:
por trás de cada texto mal formatado havia alguém digitando de madrugada,
atrás de cada layout tosco havia alguém aprendendo HTML num quarto apertado.
A internet era caótica, sim – mas era um caos visivelmente humano.
2.2. A virada das plataformas e dos algoritmos
Aos poucos, esse universo fragmentado foi sendo reorganizado por grandes plataformas.
Saímos de:
- páginas que você visitava de propósito
para:
- feeds que te visitam sem parar.
Em vez de você escolher onde entrar,
o algoritmo passou a escolher o que entra em você.
Isso trouxe comodidade, escala, acesso.
Mas também mudou silenciosamente a lógica:
- o que você vê deixou de depender só da sua curiosidade,
- e passou a depender do que retém sua atenção e gera mais dados.
O critério não é mais:
“O que faz sentido pra mim agora?”
Mas sim:
“O que faz a máquina acreditar que eu vou ficar mais tempo aqui dentro?”
A internet deixou, pouco a pouco, de ser um território de navegação ativa
para virar uma esteira de conteúdo empurrada na sua direção.
2.3. A ideia de “internet morta”
É nesse contexto que surge a imagem da “internet morta”.
Não morta porque está vazia, mas porque está cheia demais de coisa sem alma:
- comentários automáticos,
- reviews genéricos,
- perfis que parecem pessoas mas são scripts,
- textos polidos que não revelam nenhuma experiência real.
A “morte” aqui é metafórica:
é a morte da sensação de presença, de risco, de improviso, de erro humano.
A internet que já foi uma praça barulhenta vai se tornando um shopping de atenção:
- controlado por poucos,
- decorado por muitos conteúdos descartáveis,
- visitado por multidões que raramente se veem de verdade.
A IA generativa entra exatamente nessa fase –
e funciona como um acelerador de tudo isso.
Ela não cria o problema.
Ela empurra o problema até o limite.
3. A era podre da IA: excesso sem presença
3.1. A IA como máquina de saturar o mundo de conteúdo
Até aqui, já tínhamos:
- algoritmos que decidem o que aparece,
- plataformas que recompensam volume e engajamento,
- uma cultura de produção constante.
A IA entra como a peça que faltava para fechar o circuito:
- agora é possível gerar textos, imagens, vozes e vídeos em massa,
- em qualquer idioma,
- sobre qualquer assunto,
- em qualquer tom.
Produzir deixou de ser o gargalo.
O gargalo passou a ser a nossa capacidade de dar significado ao que aparece.
O resultado é um mundo em que:
- há conteúdo demais
- e experiência de menos.
3.2. Informação sem experiência, linguagem sem vivência
Um texto pode estar bem escrito e, mesmo assim, não ter vivido nada.
É a diferença entre:
- alguém contando sobre uma dor pelas palavras que encontrou,
- e um parágrafo impecável montado a partir de milhares de descrições semelhantes.
A IA é excelente em recombinar linguagem.
Mas linguagem não é só combinação: é também marca, corpo, biografia, contexto.
Quando a maior parte do que lemos e vemos é:
- tecnicamente correta,
- suavemente genérica,
- agradavelmente previsível,
corremos o risco de nos acostumar com uma comunicação em que quase tudo é “apropriado”,
mas quase nada é profundamente necessário.
3.3. Entre a falsificação e o vazio
Há dois extremos problemáticos no uso atual da IA:
- A falsificação consciente
- criar vídeos para enganar,
- manipular falas,
- distorcer eventos,
- fabricar “provas” para sustentar narrativas.
- O vazio indiferente
- produzir textos, imagens e vídeos que não enganam ninguém em particular,
- mas também não dizem quase nada a ninguém.
Num caso, temos o ataque à verdade.
No outro, o desgaste silencioso do significado.
Ambos contribuem para o mesmo efeito:
a sensação de que estamos afundados numa espécie de lama informacional,
na qual é cada vez mais difícil encontrar algo que valha o gesto de parar, respirar e realmente estar ali.
4. Verdade, confiança e o colapso dos critérios
4.1. Quando tudo pode ser falso, o que ainda importa?
Sempre houve mentira, montagem, encenação.
A diferença é que, hoje, tudo é potencialmente editável – e, com IA, quase tudo é verossímil.
Uma voz pode ser clonada, um rosto pode ser colocado em qualquer contexto, uma foto pode ser “corrigida” até parecer mais real do que a própria realidade. Não é preciso que a maioria das pessoas seja enganada o tempo todo. Basta que surja uma dúvida persistente:
“Se isso pode ser falso… por que eu acreditaria em qualquer coisa?”
A consequência mais perigosa talvez não seja o engano pontual, mas o desgaste da confiança como conceito. Quando a suspeita se torna regra, a verdade deixa de ser algo que buscamos e passa a ser algo que desistimos de esperar.
4.2. Confiança como recurso escasso
Confiar sempre foi um risco.
Mas, num ambiente saturado de conteúdo sintético, confiança se torna quase um recurso escasso.
Passamos a:
- desconfiar de imagens e vídeos,
- relativizar notícias,
- questionar depoimentos.
Isso tem um lado saudável (menos ingenuidade), mas também um efeito colateral: uma espécie de paralisia moral. Se tudo pode ser questionado, nada precisa ser levado muito a sério.
Nessa atmosfera, a confiança tende a migrar:
- de conteúdos isolados para relações de longo prazo,
- de “coisas que aparecem na minha tela” para “pessoas e comunidades que acompanho há anos”.
É como se, no meio da neblina sintética, procurássemos faróis estáveis — não perfeitos, mas reconhecíveis.
4.3. O custo psíquico da ambiguidade constante
Viver permanentemente em dúvida tem um custo silencioso.
A mente humana não foi feita para:
- checar a autenticidade de tudo o tempo todo,
- suspeitar de cada imagem,
- filtrar manualmente um oceano de estímulos contraditórios.
Quando isso vira rotina, surgem reações de defesa:
- cinismo: “tudo é manipulação, nada presta”;
- apatia: “não vou mais me envolver com nada, só rolar o feed até adormecer”;
- radicalização: agarrar-se a um grupo ou narrativa e recusar qualquer fato que a contrarie.
Não é coincidência que, ao mesmo tempo em que nos dizem que vivemos na “era da informação”, muita gente relate sensação de desorientação.
Informação demais, critério de menos, silêncio quase nenhum.
A IA, nesse contexto, não é só uma ferramenta tecnológica.
Ela se torna um multiplicador de ambiguidade – a menos que aprendamos a recolocar critérios no centro.
5. Depois da internet morta: futuros possíveis
Falar de “internet morta” não precisa ser aceitar que tudo acabou.
Pode ser, também, uma forma de perguntar: o que vem depois de uma saturação desse tipo?
Podemos imaginar, entre muitos, três cenários simbólicos.
5.1. Cenário 1 – O lixão sintético permanente
No primeiro cenário, nada muda essencialmente.
A infraestrutura atual continua, as plataformas seguem o mesmo modelo de negócios, o volume de conteúdo sintético só aumenta.
A internet aberta se torna:
- uma mistura de spam avançado,
- AI slop em todas as plataformas, isto é, conteúdo de IA barato, genérico, gerado em escala, voltado só a monetização e clique,
- bolhas de desinformação cada vez mais sofisticadas. Wikipedia+2The Guardian+2
É um mundo em que a superfície da rede vira um grande aterro de dados:
- útil para algumas tarefas técnicas,
- mas pouco habitável para uma experiência humana profunda.
Gente continua produzindo coisas boas, mas precisa lutar o tempo todo contra o ruído.
5.2. Cenário 2 – Camadas de realidade
No segundo cenário, aceitamos que a superfície aberta da internet se tornou, em grande parte, um ambiente sintético — e, em vez de tentar “purificar” tudo, criamos camadas.
Algo como:
- uma camada aberta e barulhenta, onde qualquer coisa pode aparecer (incluindo IA, bots, campanhas, experimentos),
- e camadas mais fechadas e cuidadas:
- pequenos grupos,
- comunidades pagas ou moderadas,
- espaços em que identidade, contexto e responsabilidade importam mais do que alcance.
Nessa visão, a autenticidade deixa de ser default e vira um produto deliberado:
algo que exige intenção, tempo, curadoria.
A própria pesquisa acadêmica sobre “Dead Internet Theory” já aponta nessa direção: não de que “tudo é bot”, mas de que uma parte cada vez maior da atividade online é automatizada, o que empurra o valor da interação humana para espaços menores e mais seletivos. The Times of India+3Wikipedia+3UNSW Sites+3
5.3. Cenário 3 – Um pós-digital mais maduro
No terceiro cenário, mais otimista, a saturação atual nos obriga a uma mudança de chave cultural.
Algumas ideias centrais desse pós-digital mais maduro:
- O digital deixa de ser novidade e passa a ser infraestrutura banal, como eletricidade.
- A discussão deixa de ser “o que a tecnologia pode fazer” e passa a ser “que lugar queremos dar a ela na nossa vida”.
- “Pós-digital” não é um mundo sem tecnologia, mas um mundo em que já entendemos suficientemente seus efeitos para colocá-la no lugar certo. ResearchGate+2PhilPapers+2
Nessa visão:
- IA continua existindo,
- mas é usada com mais regulação, transparência e propósito,
- e a cultura passa a valorizar mais:
- processos visíveis,
- autoria assumida,
- experiências que não cabem num prompt.
É um cenário em que a pergunta deixa de ser “até onde a IA vai?”
e passa a ser “até onde nós queremos ir com a IA ao nosso lado?”.
6. Como viver nesta fase sem se tornar cínico
Se a “fase podre” da IA é uma etapa, e não um destino, a questão prática é: como atravessá-la sem desistir de tudo?
6.1. Curadoria como ato ético
Em tempos de abundância tóxica, escolher o que consumir deixa de ser um gesto neutro.
Algumas escolhas simples têm impacto real:
- seguir menos perfis, mas acompanhar melhor;
- priorizar criadores que se responsabilizam pelo que fazem;
- buscar fontes que explicam como produzem, não só o que entregam.
Curadoria não é elitismo.
É uma forma de dizer:
“Minha atenção tem valor, e eu escolho onde investi-la.”
Numa internet em que bots já respondem por quase metade do tráfego em alguns levantamentos, essa escolha se torna ainda mais relevante. Wikipedia+1
6.2. Reabilitar o tempo lento
O feed infinito treina nosso cérebro para:
- ver rápido,
- julgar rápido,
- esquecer rápido.
Mas o que realmente nos transforma costuma pedir tempo lento:
- ler um texto longo até o fim,
- ouvir uma conversa inteira sem pular,
- acompanhar a evolução de alguém ao longo de meses ou anos.
Reabilitar o tempo lento é quase um ato de resistência:
- escolher profundidade num ambiente que recompensa superficialidade;
- escolher presença num ambiente que recompensa dispersão.
Não se trata de abandonar tudo, mas de reservar espaços em que a lógica não seja a do “próximo vídeo em 3, 2, 1…”.
6.3. Usar IA sem terceirizar a consciência
A pergunta talvez não seja “usar ou não usar IA”, mas como usar.
Alguns princípios possíveis:
- usar IA para ampliar capacidades (organizar ideias, traduzir, prototipar),
- mas não para terceirizar completamente opiniões, julgamentos, compromissos;
- desconfiar de conteúdos que parecem perfeitos demais e não mostram processo;
- deixar claro, quando possível, o que foi gerado com ajuda de máquina.
Há um risco técnico real, inclusive pros próprios modelos: se sistemas de IA forem treinados repetidamente em conteúdo gerado por outras IAs, entram em model collapse – um processo em que passam a perder contato com os padrões mais ricos do mundo real e começam a “regredir” em qualidade. Nature+1
Ou seja: preservar islas de conteúdo humano não é só uma questão cultural,
é também uma necessidade da própria tecnologia continuar funcionando bem.
7. Conclusão – O que ainda queremos chamar de “real”
7.1. Uma era podre também é uma era de revelação
Talvez estejamos, sim, numa fase particularmente deformada do uso da tecnologia:
- plataformas que se deterioram para extrair o máximo de valor possível (a tal “enshittification”), Wikipedia+1
- internet aberta tomada por conteúdos de baixa qualidade,
- IA servindo tanto para enganar quanto para preencher o mundo de ruído.
Mas uma época extrema também tem uma virtude:
ela exagera problemas que já existiam, até que não consigamos mais ignorá-los.
Sempre houve propaganda, distração, manipulação.
O que muda agora é a escala e a velocidade.
Essa aceleração nos obriga a encarar perguntas que antes podíamos empurrar para depois.
7.2. O convite: escolher o que merece ser salvo
Talvez a questão central não seja:
“O que a IA vai fazer com a humanidade?”
Mas algo mais simples e mais difícil:
“O que a humanidade ainda quer fazer consigo mesma, tendo a IA como ferramenta?”
Se a internet que conhecemos está, em algum sentido, “morrendo” –
morta pela saturação, pelo automatismo, pelo cansaço –
isso não significa que toda experiência online precise morrer junto.
Podemos escolher:
- que práticas queremos preservar,
- que tipos de encontro ainda fazem sentido,
- que formas de verdade queremos proteger (mesmo sabendo que verdade nunca foi algo fácil ou absoluto).
7.3. Perguntas para quem chegou até aqui
Em vez de terminar com uma resposta, vale terminar com algumas perguntas:
- O que, na sua vida, não pode ser terceirizado para uma máquina sem perder algo essencial?
- Em que momentos você ainda sente que está verdadeiramente presente, e não apenas consumindo?
- Que tipo de internet – e de relação com a tecnologia – você gostaria que alguém encontrasse se acessasse nossos registros daqui a cinquenta anos?
No fim, “depois da internet morta” talvez não seja um lugar geográfico nem uma era tecnológica.
Talvez seja apenas o ponto em que decidimos, individual e coletivamente,
que tipo de realidade queremos continuar chamando de nossa.