O lançamento de Clair Obscur: Expedition 33 foi um sopro de ar fresco em um gênero que, apesar de sua relevância histórica, vem sendo tratado com certo desdém por parte de parcela da indústria. Criado pelo estúdio francês Sandfall Interactive, o jogo não apenas chamou atenção pela direção de arte arrebatadora e narrativa densa, mas também por sua decisão ousada: apostar no combate por turnos em plena era de dominação dos jogos de ação em tempo real.
Mesmo com a aclamação da crítica e uma base de fãs em rápido crescimento, Guillaume Broche, diretor criativo do projeto, reconhece que os RPGs por turnos ainda enfrentam barreiras invisíveis. Há uma percepção persistente de que o formato é antiquado, menos emocionante ou incapaz de competir com a adrenalina constante das batalhas em tempo real. Broche, no entanto, acredita que essa visão está mais ligada a uma falta de inovação do que a qualquer limitação intrínseca do gênero.
O charme e o peso de um sistema “fora de moda”
Os RPGs por turnos têm raízes profundas na história dos videogames. Durante décadas, foram o padrão de ouro para experiências de combate estratégico — de Final Fantasy a Dragon Quest, passando por Chrono Trigger e Pokémon. No entanto, à medida que a tecnologia avançou e os motores gráficos permitiram sistemas mais fluidos, os títulos de ação em tempo real começaram a dominar o mercado, atraindo um público sedento por respostas instantâneas e feedback visual constante.
Essa mudança de preferência não eliminou o interesse pelos turnos, mas criou um estigma: o de que o formato é lento, previsível ou ultrapassado. Broche destaca que essa percepção ignora o que há de mais valioso no modelo — a capacidade de promover escolhas ponderadas, planejar estratégias de longo prazo e oferecer uma profundidade tática que, muitas vezes, se perde no ritmo frenético da ação em tempo real.
Turnos reinventados — a fórmula da Sandfall Interactive
Ciente desse cenário, a Sandfall Interactive sabia que não bastava apenas criar mais um RPG por turnos. O desafio era reinventar o formato sem abrir mão de sua essência. Clair Obscur: Expedition 33 nasceu dessa filosofia, combinando elementos de ação em tempo real com o esqueleto clássico do combate estratégico.
No jogo, os turnos não são pausas passivas: o jogador é constantemente convidado a interagir, seja aparando ataques inimigos com precisão milimétrica, seja esquivando-se de investidas que ignoram a ordem estabelecida. Essa camada de ação mantém a tensão elevada e faz com que cada turno tenha peso, quebrando a ideia de que “esperar sua vez” é sinônimo de passividade.
Além disso, a integração entre narrativa e mecânica é um dos trunfos do título. As batalhas não acontecem no vácuo: cada confronto carrega um contexto dramático, seja pela ameaça existencial do ciclo de destruição que assola o mundo do jogo, seja pelo desenvolvimento dos personagens que acompanham o jogador na expedição. Essa fusão entre história e sistema de combate dá aos turnos uma relevância emocional rara.
A barreira invisível do mercado
Mesmo com a recepção calorosa, Broche aponta que jogos como Clair Obscur ainda enfrentam mais resistência inicial do que títulos de ação. É como se o gênero precisasse “provar” sua modernidade a cada novo lançamento, enquanto produções em tempo real partem de uma posição mais confortável.
Isso se reflete, por exemplo, na cobertura midiática, nas campanhas de marketing e até nas expectativas dos investidores. Um RPG por turnos, especialmente se for de um estúdio relativamente novo, precisa mostrar de imediato por que merece atenção em um mar de lançamentos visualmente impressionantes e mecanicamente dinâmicos.
Essa barreira é ainda mais desafiadora para projetos ambiciosos, que exigem anos de desenvolvimento e investimentos consideráveis. No caso de Clair Obscur, a confiança no produto final foi essencial para convencer parceiros e distribuidores de que valia a pena apostar no híbrido entre tradição e inovação.
Quando a inovação resgata o clássico
O que Clair Obscur: Expedition 33 prova é que não existe formato “morto” — existe, sim, abordagem desgastada. Ao unir timing de ação em tempo real a escolhas estratégicas por turnos, o jogo cria uma experiência que dialoga tanto com veteranos do gênero quanto com jogadores acostumados à adrenalina constante.
Essa fórmula não só preserva a identidade tática dos turnos, como também amplia o potencial de mercado. Jogadores que normalmente ignorariam um RPG clássico se veem atraídos pela estética cinematográfica, pelas mecânicas interativas e pela atmosfera densa e imersiva. É a ponte perfeita entre dois públicos que, historicamente, se mantinham separados.
Um farol para futuros desenvolvedores
Se há algo que Clair Obscur deixa claro é que o combate por turnos não precisa se limitar à nostalgia. A Sandfall Interactive abriu caminho para que outros estúdios revisitem o formato com a coragem de subverter expectativas, seja adicionando elementos de ação, seja explorando novas formas de contar histórias dentro desse ritmo.
O sucesso do jogo — tanto em vendas quanto em repercussão crítica — serve como argumento sólido para derrubar a ideia de que o público “não quer mais” RPGs desse tipo. Ao contrário: quando bem executado, o gênero pode surpreender e até rivalizar com os grandes nomes da ação.
Uma Expedição Poderosa Contra o Preconceito
Clair Obscur: Expedition 33 não é apenas um marco técnico e narrativo; é também um manifesto contra a visão limitada de que turnos são coisa do passado. Ao mostrar que é possível reinventar a roda sem perder o que a torna funcional, a Sandfall Interactive envia uma mensagem clara à indústria: a inovação não está em abandonar formatos consagrados, mas em transformá-los com inteligência e paixão.
Para quem ainda hesita em dar uma chance aos RPGs por turnos, Clair Obscur é a prova de que estratégia e emoção podem coexistir, entregando uma experiência tão intensa quanto qualquer batalha em tempo real. E para os fãs de longa data, é um lembrete reconfortante de que o gênero ainda tem muitas histórias para contar — basta que alguém esteja disposto a ouvi-las… e a jogá-las.