A Era dos Remakes: Nostalgia Preguiçosa ou Preservação Necessária?
Se você acompanhou a E3 de 2015, você se lembra daquele momento. O logo. A música. A promessa do retorno a Midgar. O anúncio de Final Fantasy VII Remake não foi apenas o destaque da feira; foi um evento sísmico que dividiu a internet e, de certa forma, validou a era em que vivemos. Uma […]
Se você acompanhou a E3 de 2015, você se lembra daquele momento. O logo. A música. A promessa do retorno a Midgar. O anúncio de Final Fantasy VII Remake não foi apenas o destaque da feira; foi um evento sísmico que dividiu a internet e, de certa forma, validou a era em que vivemos. Uma era onde o passado não apenas inspira, mas ativamente compete com o presente pelo nosso tempo e dinheiro.
Ao mesmo tempo, essa E3 foi marcada por uma enxurrada de continuações: Rock Band 4, Call of Duty: Black Ops III, Assassin’s Creed Syndicate. A empolgação com os remakes, somada à fadiga das franquias anuais, levantou a questão que assombra a indústria desde então: chegamos a um ponto de saturação criativa?.
Estamos presos em um ciclo de nostalgia, onde estúdios preferem a segurança de um sucesso comprovado à incerteza arriscada de uma nova propriedade intelectual (IP)? Ou será que os remakes são algo mais? Seriam eles um ato vital de preservação cultural, resgatando clássicos do esquecimento e apresentando-os a uma nova geração?
A resposta, como em tudo na arte, não é simples. É um espectro que vai da preguiça cínica à reinvenção genial.
O Que Define um Remake? (E Por Que Não é um Remaster)
Antes de julgar, precisamos definir nossos termos. O debate é frequentemente poluído pela confusão entre duas práticas muito diferentes: Remaster e Remake.
- O Remaster (O “Facelift”): É o mesmo jogo, apenas adaptado para hardwares modernos. Pense em Mass Effect Legendary Edition ou Dark Souls Remastered. O código-fonte original é usado, mas recebe melhorias visuais, como texturas em alta definição, aumento na taxa de quadros (fps) e resolução. É essencialmente uma restauração digital.
- O Remake (A “Reconstrução”): Este é o centro do nosso debate. Um remake é um jogo feito do zero. Utilizando o original apenas como um projeto ou inspiração, o estúdio constrói tudo de novo: um novo motor gráfico, novos modelos de personagens, novos assets, e, crucialmente, novas mecânicas. Demon’s Souls (2020) é um exemplo perfeito; ele não compartilha uma linha de código com o original de 2009.
- O Re-imagining (A “Reinterpretação”): Esta é a categoria mais complexa e artisticamente interessante. Um “re-imagining” não apenas reconstrói, mas também muda fundamentalmente elementos do original. Resident Evil 2 (2019) não é apenas o jogo de 1998 com gráficos bonitos; ele troca as câmeras fixas e os controles de tanque por uma perspectiva moderna sobre o ombro, mudando o ritmo e o terror. Final Fantasy VII Remake é o exemplo máximo, transformando um RPG de turnos em um RPG de ação e, o mais importante, alterando drastic… bom, chegaremos lá.
Entender essa diferença é o primeiro passo. Ninguém acusa um remaster de ser “preguiçoso”; ele é utilitário. A acusação de preguiça cai sobre o Remake, pois ele consome o tempo e os recursos de um estúdio AAA que poderiam estar sendo usados para criar “algo novo”.
O Argumento da “Nostalgia Preguiçosa”: Por Que Tantos Remakes?
A crítica mais comum à “Era dos Remakes” é econômica e criativa. Ela se baseia na ideia de que a indústria está com aversão ao risco a um nível paralisante.
O Fator Risco (e a Lição da E3)
O desenvolvimento de um jogo AAA hoje custa centenas de milhões de dólares. É um investimento colossal, e os publishers, como a Square Enix ou a Capcom, buscam controlar o risco. Como vimos na E3 de 2015 , a reação a um nome conhecido (como Final Fantasy ou Shenmue) foi exponencialmente maior do que a reação a IPs novas, como Horizon: Zero Dawn ou No Man’s Sky na época.
Para um executivo, a lição é clara: o público diz que quer inovação, mas ele paga por nostalgia.
Um remake é o “porto seguro” perfeito. Ele possui:
- Audiência Garantida: Os fãs do original.
- Marketing Fácil: A marca já é conhecida.
- Conceito Validado: A história e o gameplay já provaram que funcionam.
É, financeiramente, uma aposta muito mais segura do que gastar 200 milhões de dólares em um universo de ficção científica totalmente novo que pode ou não ser um sucesso.

A Saturação e os “Caça-Níqueis”
Quando essa lógica é levada ao extremo, o resultado é cínico. O exemplo mais infame é Warcraft 3: Reforged. A Blizzard não entregou um remake, e mal entregou um remaster. Foi um produto lançado às pressas, quebrou promessas de campanha e, pior de tudo, substituiu à força o cliente do jogo original, tornando a versão clássica inacessível. Isso não é preservação; é profanação.
Outros exemplos, como a Silent Hill HD Collection (que usou código-fonte inacabado e introduziu mais bugs), mostram o lado sombrio da nostalgia: um “caça-níquel” rápido, de baixo esforço, feito para explorar a boa vontade dos fãs. Isso é preguiçoso. E é uma prática que merece toda a crítica que recebe.
O Risco de Sufocar a Inovação
O argumento final contra os remakes é o custo de oportunidade. Se um estúdio de ponta como a Naughty Dog gasta recursos refazendo The Last of Us (um jogo que já parecia moderno) em vez de criar uma nova IP, a indústria como um todo não perde? Se os melhores talentos do mundo estão focados em polir o passado, quem está construindo o futuro?.
O Argumento da “Preservação Necessária”: Resgatando a História
A visão cínica, no entanto, ignora uma verdade fundamental sobre os videogames: eles são uma mídia frágil.
A Morte do Hardware Original
Jogos não são como filmes ou livros. Um filme dos anos 70 pode ser visto em uma TV 8K. Um livro de 1800 pode ser lido em um Kindle. Um jogo de 1998? Boa sorte.
- O hardware original (PlayStation, N64, Dreamcast ) está morrendo.
- As TVs modernas não têm as entradas necessárias para esses consoles.
- A emulação, embora popular, é uma área legalmente cinzenta e muitas vezes imprecisa.
Sem uma intervenção oficial, os jogos ficam presos em suas plataformas originais, tornando-se “abandonware” — inacessíveis para qualquer pessoa que não seja um colecionador dedicado.
É aqui que entra o remake como preservação. Demon’s Souls (2009) é o caso de estudo perfeito. Por uma década, ele ficou preso no PlayStation 3. O aclamado estúdio Bluepoint Games não apenas o reconstruiu para o PS5; eles o libertaram. Milhões de jogadores que entraram na série Souls com Dark Souls ou Elden Ring puderam, pela primeira vez, experimentar legalmente e facilmente onde tudo começou.

Modernizando o Injogável (Ajustes de QoL)
Vamos ser honestos: a nostalgia tem um filtro poderoso. Muitas vezes, lembramos dos jogos como sendo melhores do que realmente eram. Voltamos a eles e… os controles são horríveis, a câmera é caótica, o design é obtuso.
Resident Evil 2 (1998) é um clássico. Mas seus controles “tanque” e câmeras fixas são um obstáculo quase intransponível para um jogador moderno. O remake de 2019 entendeu isso. Ele pegou o espírito do original (gestão de inventário, terror, exploração) e o traduziu para uma linguagem de design moderna (câmera sobre o ombro). O resultado não foi apenas um bom remake; foi um dos melhores jogos de survival horror da década.
Isso não é preguiça. É um trabalho de tradução cultural e mecânica.

O Remake como Cátedra de Game Design
Alguns remakes servem a um propósito ainda mais elevado: eles atuam como um “museu jogável” ou uma cátedra de design. O remake de Shadow of the Colossus (2018), também da Bluepoint, é o exemplo máximo. O estúdio resistiu à tentação de “consertar” o jogo. Eles mantiveram intocada a física desajeitada de Agro, a escalada lenta e o framerate “cinematográfico” intencional de Fumito Ueda.
Eles apenas reconstruíram o mundo com uma fidelidade gráfica de tirar o fôlego. Ao fazer isso, eles preservaram a tese de design original, provando que sua visão artística era atemporal. Eles não refizeram o jogo; eles o revelaram.
O Ponto de Virada: O Remake como Evolução Artística
Até agora, discutimos os remakes como uma escolha binária: caça-níqueis cínicos ou preservação respeitosa. Mas existe uma terceira categoria. A mais rara. A mais ousada. O remake que usa o original não como um destino, mas como um ponto de partida.
É aqui que voltamos para Final Fantasy VII Remake.
O jogo de 2020 não é o Final Fantasy VII de 1997. E ele sabe que você, o jogador, sabe disso. O jogo inteiro é uma meta-narrativa sobre o peso da nostalgia e as expectativas dos fãs.
Os “Whispers” (Sussurros) — aquelas entidades fantasmagóricas que aparecem para “corrigir” o curso dos eventos — são a manifestação literal da nostalgia. Eles são a força do destino (o roteiro original de 1997) tentando impedir que os personagens façam novas escolhas. Quando o jogo pergunta “E se pudéssemos salvar Aerith?”, não é mais uma fantasia de fã; é uma pergunta teórica que o próprio jogo está explorando ativamente.
Final Fantasy VII Remake usa sua nostalgia contra você. Ele o atrai com a promessa de conforto e, em seguida, puxa o tapete, forçando-o a questionar por que você queria essa história de novo, exatamente da mesma maneira.
Você pode amar ou odiar essa escolha, mas há uma coisa que ela não é: preguiçosa. É uma das manobras narrativas mais ousadas, complexas e arriscadas da história recente dos jogos AAA. É um remake que evoluiu para se tornar uma sequência disfarçada, iniciando um debate totalmente novo sobre o que significa “refazer” uma obra de arte.

Conclusão: O Veredito da Era dos Remakes
Então, nostalgia preguiçosa ou preservação necessária?
A “Era dos Remakes” não é uma coisa só. É um espectro.
- É Preguiça Cínica quando resulta em um produto quebrado, incompleto e desrespeitoso como Warcraft 3: Reforged, que explora a nostalgia pelo lucro fácil.
- É Preservação Vital quando resgata uma obra-prima como Demon’s Souls da obscuridade do hardware, permitindo que uma nova geração a estude e a admire.
- É Tradução Habilidosa quando moderniza controles arcaicos, como em Resident Evil 2, tornando o espírito do clássico acessível a todos.
- E, no seu auge, é Inovação Artística quando usa o original como um trampolim para uma nova conversa, como faz Final Fantasy VII Remake.
O perigo, como alertado em 2015, não são os remakes em si. O perigo é um futuro onde apenas remakes e sequências recebem orçamentos milionários, enquanto as novas IPs são deixadas para morrer na fase de conceito.
Precisamos dos remakes para nos lembrar de onde viemos. Mas também precisamos de novas ideias para nos mostrar para onde vamos. O equilíbrio entre os dois é o que definirá se esta era será lembrada como um renascimento criativo ou como um beco sem saída nostálgico.