A Crise da Preservação: Por Que Estamos Perdendo a História dos Videogames?
Em abril de 2024, a Ubisoft fez o impensável. Ela não apenas desligou os servidores do jogo de corrida The Crew — tornando-o injogável, o que já é ruim — mas foi um passo além: ela começou a revogar ativamente as licenças do jogo das bibliotecas dos jogadores. Pessoas que pagaram pelo jogo agora não […]
Em abril de 2024, a Ubisoft fez o impensável. Ela não apenas desligou os servidores do jogo de corrida The Crew — tornando-o injogável, o que já é ruim — mas foi um passo além: ela começou a revogar ativamente as licenças do jogo das bibliotecas dos jogadores. Pessoas que pagaram pelo jogo agora não podem sequer baixá-lo. O produto, pelo qual gastaram dinheiro, desapareceu.
Este evento não foi um acidente; foi um sintoma. É o sinal mais alarmante de uma doença que consome a indústria há décadas: a crise da preservação dos videogames.
Enquanto livros de mil anos atrás descansam em bibliotecas e filmes do início do século XX são restaurados digitalmente, jogos de apenas 10 ou 15 anos atrás estão desaparecendo em um abismo digital. Estamos, coletivamente, falhando em salvar a forma de arte mais influente do nosso tempo.
Esta é uma análise profunda do porquê estamos perdendo nossa história e o que está em jogo.
O que é a Preservação de Videogames (E Por Que Ela Importa)?

Quando falamos em “preservação”, muitos pensam em colecionadores acumulando cartuchos em prateleiras. Isso é colecionismo. Preservação é algo mais profundo.
É a garantia de que as gerações futuras possam acessar, estudar e jogar nosso catálogo cultural. É o mesmo princípio que se aplica a filmes, músicas e literatura. O filme “Viagem à Lua” (1902) de Georges Méliès quase se perdeu para sempre; foi salvo por uma única cópia encontrada e restaurada. A indústria de games, hoje, não tem esse plano de contingência.
Por que isso importa? Porque jogos são mais do que produtos; são artefatos culturais. Eles refletem a tecnologia, a arte, a música e as ansiedades da sociedade em que foram criados. Deixar Chrono Trigger desaparecer teria o mesmo peso cultural que queimar as fitas master dos Beatles.
A crise da preservação não é um problema único, mas uma tempestade perfeita de quatro fatores principais: a degradação do hardware, a armadilha do digital, as barreiras legais e a indiferença da própria indústria.
1. A Bomba-Relógio do Hardware: A Degradação Física

O primeiro inimigo da preservação é o tempo. A mídia física que usamos para armazenar jogos é assustadoramente frágil.
- Podridão de Disco (Disk Rot): Mídias ópticas (CDs, DVDs, Blu-rays) não são eternas. A camada reflexiva do disco, onde os dados são gravados, pode oxidar e se deteriorar com o tempo, tornando-os ilegíveis. Discos de Sega Saturn, PS1 e Dreamcast estão morrendo em coleções ao redor do mundo neste exato momento.
- Decadência de Cartuchos: Cartuchos são mais robustos, mas suas baterias internas (usadas para salvar jogos) morrem. Além disso, os próprios chips e capacitores dentro dos consoles (um Super Nintendo, um Mega Drive) falham, vazam e corroem a placa-mãe.
- O Mercado Inacessível: A consequência direta da degradação é a escassez. Quando a mídia física se torna a única forma “legal” de jogar um título, o mercado de colecionadores inflaciona os preços a níveis absurdos. Jogos de GameCube como Fire Emblem: Path of Radiance ou Skies of Arcadia Legends custam centenas de dólares, tornando-os financeiramente inacessíveis para quem só quer jogá-los.
O hardware está morrendo, e o preço para acessá-lo legalmente é proibitivo. A solução óbvia deveria ser o digital, certo? Infelizmente, é aí que a crise se torna um pesadelo.
2. A Prisão Digital: O Fim da Propriedade
Este é o coração da crise moderna. A transição do físico para o digital não nos deu a imortalidade; ela apenas transferiu o poder de preservação das nossas mãos para as mãos de corporações que veem seus catálogos antigos como um inconveniente.
O Incêndio na Biblioteca: O Caso do 3DS e Wii U

Em março de 2023, a Nintendo desligou permanentemente as eShops do Nintendo 3DS e do Wii U. Isso não foi apenas o fechamento de uma loja; foi um evento de extinção em massa.
Mais de 1.000 jogos exclusivamente digitais foram efetivamente apagados da existência. Títulos de DSiWare, clássicos do Virtual Console que não existem em nenhum outro lugar, e milhares de jogos indie fantásticos… sumiram.
Se você não os comprou antes da data limite, nunca mais poderá comprá-los legalmente. E mesmo que os tenha comprado, seu direito de “propriedade” está preso a um único console. Se o seu 3DS quebrar, todos os seus jogos morrem com ele. Você não pode baixá-los novamente.
A Nintendo, uma empresa que lucra bilhões, decidiu ativamente que economizar nos custos de servidor era mais importante do que preservar 15 anos de sua própria história e da história de seus parceiros.
O Assassinato do Jogo: O Pesadelo “Always-Online”
O caso de The Crew é ainda mais sinistro. O fechamento da eShop foi um ato de negligência; o desligamento de The Crew é um ato de destruição ativa.
Jogos “Games as a Service” (GaaS) ou que exigem conexão online constante (mesmo para single-player) não são produtos que você compra. São serviços que você aluga, e o contrato de aluguel pode ser encerrado a qualquer momento.
- The Crew (Ubisoft): Ao revogar as licenças, a Ubisoft estabeleceu um precedente aterrorizante: uma empresa pode entrar na sua casa e tirar o produto da sua prateleira, anos depois de você tê-lo comprado.
- Overwatch 1: Não pode mais ser jogado. Foi completamente substituído por Overwatch 2, um jogo com um modelo de monetização e balanceamento totalmente diferente. A experiência original está perdida.
- Babylon’s Fall (Square Enix): Um jogo de preço cheio (US$ 60) que foi desligado menos de um ano após o lançamento.
Estamos comprando jogos que vêm com uma data de validade embutida e secreta. O “fim da propriedade” significa que não temos controle sobre a preservação da nossa própria biblioteca.
3. O Labirinto Legal: Quando a Lei Impede a História

“Mas e a emulação? Ela não resolve tudo isso?”
Sim, a emulação é a ferramenta de preservação mais importante que temos. E, ironicamente, ela é ativamente combatida pelas mesmas empresas que se recusam a preservar seus próprios jogos.
O problema é a lei. Nos Estados Unidos, a Lei de Direitos Autorais do Milênio Digital (DMCA) torna ilegal “contornar medidas de proteção tecnológica”. Em termos simples: dumpar (extrair) um jogo de um disco ou cartucho, o primeiro passo para a preservação, é considerado ilegal.
- A Batalha Legal: A Video Game History Foundation (VGHF), uma organização sem fins lucrativos dedicada à preservação, luta constantemente no Congresso dos EUA por isenções a essa lei, argumentando que bibliotecas e arquivistas precisam ser capazes de fazer cópias de preservação.
- A Ação Corporativa: A Nintendo é notória por sua postura agressiva. Ela processou e fechou sites de ROMs (arquivos de jogos) por anos. Recentemente, em 2024, processou os criadores do emulador Yuzu (Nintendo Switch), forçando-os a fechar e pagar milhões em danos.
O resultado é um paradoxo insano:
- A empresa (ex: Nintendo) se recusa a vender o jogo (ex: jogos do 3DS eShop).
- A única maneira de jogá-lo é através da emulação.
- A empresa processa e ataca ativamente a comunidade de emulação.
A lei, como está escrita, prioriza o lucro de curto prazo de uma corporação sobre a sobrevivência de longo prazo de uma obra cultural.
4. A Indiferença da Indústria: Códigos-Fonte Perdidos

O problema final, e talvez o mais frustrante, é a simples negligência. Por décadas, as publishers não viam seus jogos como “arte”, mas como “software” descartável. O resultado? Elas perderam seus próprios códigos-fonte.
O “código-fonte” é a receita original do jogo. Sem ele, é quase impossível portar ou remasterizar um jogo para um novo hardware.
- Silent Hill HD Collection: Este infame “remaster” para PS3/Xbox 360 foi construído a partir de um código beta, inacabado, porque a Konami havia perdido o código-fonte final dos jogos de PS2.
- Kingdom Hearts 1: A Square Enix perdeu o código-fonte original, forçando a equipe a recriar o jogo do zero (usando os assets da versão final) para o remaster Kingdom Hearts 1.5.
- Hitman: Blood Money: A IO Interactive admitiu ter perdido o código-fonte, o que tornou o remaster HD muito mais difícil do que deveria.
Essa negligência sistêmica significa que, mesmo quando uma empresa quer relançar um clássico, ela muitas vezes não consegue. Ela deixou sua própria história apodrecer em um disco rígido esquecido.
Os Heróis Anônimos: Quem Está Lutando Pela Nossa História?

Se dependêssemos apenas das publishers, 90% da história dos games já estaria perdida. A preservação hoje é uma batalha travada por voluntários, acadêmicos e fãs.
- A Comunidade de Emulação: Grupos como o MAME (focado em preservar arcades) e os criadores de emuladores como o RPCS3 (PS3) e o Cemu (Wii U) são heróis culturais. Eles fazem engenharia reversa de hardware complexo em seu tempo livre, criando softwares que são a única maneira de jogar milhares de jogos em plataformas mortas. O Cemu, por exemplo, tornou a biblioteca do Wii U acessível no PC anos antes de a Nintendo portar seus “hits” para o Switch.
- Arquivos Digitais: O Internet Archive é uma fortaleza. Ele hospeda bibliotecas jogáveis de MS-DOS, Apple II e consoles clássicos, tudo gratuitamente no navegador, sob o argumento de uso justo para fins acadêmicos.
- Fundações: A Video Game History Foundation (VGHF) não apenas arquiva fisicamente, mas também digitaliza e cataloga materiais de desenvolvimento, como revistas, arte conceitual e códigos-fonte doados, lutando na esfera legal para tornar esse trabalho mais fácil.
O Futuro da Preservação: O que Pode Ser Feito?
A situação é sombria, mas não sem esperança. A solução exige uma mudança em três frentes:
- Na Indústria: As empresas precisam mudar de mentalidade.
- Retrocompatibilidade: A abordagem do Xbox é o padrão-ouro. Eles investiram milhões para fazer jogos do Xbox original e do 360 funcionarem em consoles modernos, muitas vezes com melhorias. Isso é respeito pelo consumidor e pela história.
- Lojas Abertas: Plataformas como o GOG (Good Old Games) e o Steam vendem jogos clássicos sem DRM (proteção de cópia), garantindo que você possa baixar e arquivar o jogo que comprou.
- Abandonar o “Always-Online”: Jogos single-player NUNCA deveriam exigir um servidor.
- Na Lei: As leis de direitos autorais precisam ser reformadas. O “Abandonware” (software abandonado pelo proprietário) deveria se tornar um conceito legal. Se uma empresa não vende mais um jogo e não tem planos de vendê-lo, ele deveria cair em domínio público ou, no mínimo, ser legalmente liberado para preservação por arquivistas.
- Em Nós, Consumidores: Precisamos ser vocais. Apoie empresas que praticam boa preservação. Exija o fim das práticas predatórias de “always-online”. Fale sobre o fechamento de lojas. Não podemos aceitar um futuro onde nossa cultura é descartável e nossas compras têm data de validade.
A história dos videogames é a nossa história. É a crônica da nossa era digital. Não podemos ficar parados enquanto ela é apagada, um servidor desligado de cada vez.